Era um
menino comum, no auge de seus dezessete anos. Certa vez, seus pais decidiram
enviar ele para um acampamento de férias. Nunca gostara de plantas ou bichos,
então já previra a experiência como um verdadeiro desastre. Os dormitórios do
acampamento ficavam todos juntos, no centro de uma grande clareira rodeada por
árvores grandes e frondosas. O contraste do azul límpido e sem nuvens do céu,
com o verde brilhante e viçoso das folhas das árvores era um deleite para os admiradores
de belas paisagens. A poucos metros, floresta adentro, havia um lindo rio que
estendia seus braços, juntando-se com pequenos riachos, cujas águas eram
transparentes e refletiam a beleza que as rodeavam. Mas o jovem não via nada
disso: sua única preocupação era a de fugir de cada atividade proposta para os
integrantes do acampamento. E em uma dessas fugas, ele se perdeu.
Nesse
dia, o frio estava enregelante e fazia a ponta de seus dedos formigarem. Ele
tinha acabado de se esconder no meio das árvores, entretanto, por ser
desatento, acabou se perdendo. Quando deu por isso, começou a correr em
círculos. Estava praguejando para si mesmo, quando um som pesado de algo grande
caindo na água lhe assustou. Um silêncio estarrecedor seguiu esse estrondo, como
se toda natureza tivesse se calado, e isso deixou o garoto em pânico. Um
arrepio subiu-lhe pela coluna, se instalando na nuca. O garoto procurou, com
mãos trêmulas, a pequena lanterna que ganhara do pai em seu último aniversário,
acendeu-a e apontou para o lugar de onde o barulho havia vindo. Seu coração
saltou no peito quando a quietude foi cortada por uma voz magnificente que
entoava uma canção que ele nunca havia ouvido antes.
A
música que preenchia o ambiente que o rodeava era tão linda que o jovem sentiu
sua curiosidade aumentando em detrimento do medo, e ele foi se aproximando da
origem da voz.
— Não
olhe para mim. — A voz interrompeu o canto e pediu, quase em tom de ordem.
Paralisado,
o garoto encostou-se em uma árvore, dando as costas para o local do qual a voz
vinha, e deixou-se cair sentado no chão.
— Quem
é você? — Perguntou, ainda dividido entre ouvir respostas ou deixa-la cantar
tão excelsa canção.
— Meu
nome é Iara.
— Quer
dizer… a… Iara… tipo, a das lendas mesmo? — O jovem indagou, perguntando-se se
aquilo não era alguma brincadeira do pessoal do acampamento, como vingança por
cada atividade que tiveram que fazer com uma pessoa a menos graças a ele.
— E que
lendas contam sobre a Iara? — Foi a resposta que ele teve.
Ele
decidiu apenas entrar na brincadeira e ver até onde iriam. Era bom saber que
não estava perdido: assim que seus colegas anunciassem que tudo aquilo era
encenação, todos poderiam voltar para o acampamento e tudo ficaria certo.
— Ah,
você sabe, tem aquele lance da índia toda talentosa e tal. Aí seus irmãos
ficaram com inveja dela e planejaram matá-la. Mas ela era esperta, sacou a
coisa toda, e matou eles primeiro. Então o pai deles ficou muito bravo,
capturou ela e jogou no rio. Essa parte não sei muito bem… ou os peixes salvaram
ela, ou foi qualquer coisa sobre a lua. Sei que ela vira sereia no final e
atrai e mata os homens que se aproximam.
— É
isso que dizem? — A voz parecia ultrajada com a resposta dele. — Pois então te
darei um pouco da verdade. Era uma vez uma índia jovem e ótima caçadora,
chamada Iara. Ela era filha de um pajé que queria muito ter um filho homem, e
que por isso a tratava como qualquer outro membro da tribo do sexo masculino.
Entretanto, mulheres e homens tinham papéis distintos dentro da tribo e essa
diferenciação começou a causar um desconforto nos membros da tribo. Com o
passar do tempo, as pessoas passaram a evitá-la e tratá-la de forma diferente,
excluindo-a das atividades do grupo. Quando o pajé morreu, Iara passou a ser
hostilizada e perseguida, até que um dia ela foi espancada e seu corpo sem vida
foi atirado em um rio.
Conforme
ela falava, o garoto franzia mais e mais o cenho, tentando encaixar aquela
narrativa em alguma versão da lenda que pudesse ter ouvido antes. A voz narrava
tudo com tanta propriedade e paixão, que ele começou a se perguntar se aquilo
era realmente uma troça ou se era realidade.
Sem
dar-se pelos devaneios de seu interlocutor, Iara continuou:
— Mas
Tupã teve pena daquela alma, e devolveu-lhe a vida. Não essa vida tênue e insignificante
que os humanos têm, mas uma vida longa sendo mãe das águas e protetora da
natureza. Tupã presenteou-lhe com uma voz que só poderia ser ouvida com o
coração, e deu a ela o dom de falar e conhecer o coração dos homens. Quando
algum homem de más intenções se aproxima do local que ela guarda, ela vê a
maldade no coração dele. Seja contra as árvores, os animais, ou contra outros
humanos… ela enxerga tudo isso no interior dos homens. Então ela os seduz com a
sua voz pura, que ludibria corações corruptos e os atrai para as águas. Eles,
em contanto com algo tão puro quanto a existência dela, nem se dão conta de que
estão afundando, nem percebem quando seus pulmões sugam água e inflam, não notam
que estão perdendo os sentidos… Nem é uma morte tão ruim. E ela só induz as
pessoas ruins ao afogamento. As boas, que a escutam quando ela diz para não
olharem para ela, saem ilesas.
A
primeira frase que ela proferira, voltara a mente dele. Estava começando a
ficar assustado. Engoliu em seco, antes de perguntar:
— E as
pessoas boas e curiosas, que insistem em olhar para ela?
—
Enlouquecem.
Em sua
cabeça, o menino podia ouvir uma voz gritando para que fosse embora e
esquecesse tudo que ouvira ali. Mas ele, como tantas outras pessoas no mundo,
decidiu persistir na coisa errada, não dando ouvido aos próprios instintos.
Levantou-se
de supetão, decidido a conhecer o rosto de sua interlocutora e saber se tudo
aquilo era verdade. Sentia-se tão dono de sua razão que duvidava que olhar para
alguém pudesse destitui-lo de sua lucidez. Ademais, era alguém bom, segundo
seus próprios cálculos. Então, se a morte vinha apenas para os maus, a
experiência não poderia ser ruim, poderia?
— Você
não deveria fazer isso. — A voz tentou dissuadi-lo, e ele nem sabia se era a
voz da Iara ou de sua própria intuição. — Eu posso te guiar de volta para onde
veio.
Porém,
ele estava decidido. Ignorou tudo isso, e colocou-se ao lado da árvore na qual
estava encostado até alguns segundos atrás e olhou para além, seu olhar
levantando lentamente, construindo aos pouquinhos uma imagem em sua cabeça.
Viu
aquelas águas espelhadas, e logo reconheceu o local como uma parte do rio que
circundava a floresta. Olhou além, na outra margem, aquilo que parecia ser uma
cauda de um peixe gigante, parcialmente submersa. As escamas furta-cor pareciam
pequenos prismas, decompondo e refletindo todas as cores, e subiam, delineando
a cauda grande e roliça que terminava em uma cintura de mulher. “E, uau, que
mulher! ”, o jovem pensou. Sua pele cor de oliva era tão lisa que ele podia lhe
sentir a maciez só de olhar para ela. Os cabelos longos, grossos e negros como
ônix, cobriam os seios. Seu rosto parecia ao mesmo tempo delicado e rígido,
como se tivesse sido esculpido suavemente em algum material que os humanos
ainda não conheciam. A face que o encarava não demonstrava qualquer emoção. Os
olhos grandes e expressivos pareciam duas safiras e faziam um contraste lindo
com os cílios grossos e longos que os contornavam belamente.
— Seus
olhos são azuis… — Ele murmurou e mal ouviu quando os lábios da mulher se
mexeram formando um “não” que se perdeu antes de atingir os ouvidos do garoto;
antes que ele pudesse absorver o significado de tudo que acontecia ao redor
dele.
Ele
sentia como se Iara olhasse através de sua alma, e se sentia compelido a se
aproximar e sentir a textura de sua pele com as próprias mãos. O garoto
caminhava em direção a ela sem perceber que o fazia. Seus pés, um após o outro,
diminuíam a distância entre ele e seu objeto de adoração. Sentiu algo balançar seu
corpo levemente, e agitar, como na primeira vez em que sentiu as ondas do mar
em seu corpo, entretanto não se demorou sentindo isso. Não quando o azul
parecia prendê-lo e puxá-lo tão levemente, e de forma tão cadenciada, que ele
não poderia fazer nada mais além de ir.
De
repente, a cor pareceu vazar dos olhos de Iara através de lágrimas e, assim que
tocava em qualquer coisa, pintava aquilo de azul. E pouco a pouco aquela cor
linda e envolvente estava em todo lugar, sem qualquer vestígio de outro tom. O
garoto se sentiu sendo engolido por tudo: pela cor, pela sensação, pelos seus
próprios devaneios… e nem notou quando o azul foi escurecendo e tudo se tornou
negro como os cabelos que sumiam agora no fundo do rio.
Quando
acordou, seus colegas do acampamento estavam todos em volta dele. Sentia o
peito queimando, como se tivessem corrido por todo o perímetro da floresta.
— Ele
acordou! — Um garoto disse, e logo todos estavam sufocando ele com perguntas.
— Seus
avós já estão chegando — O responsável tentou tranquilizá-lo.
— Por
que não… meus pais? — O jovem perguntou, com dificuldade.
Todos
se calaram e se entreolharam.
— Seus
pais morreram. — Um garoto cortou o silêncio, timidamente.
— O
quê?! — Chocado, ergueu-se subitamente, ignorando a ardência no pulmão.
— Mas
foi você quem disse. Você mora com seus avós desde que tinha três anos de
idade. Quando seus pais morreram, você era bem pequeno ainda.
A
cabeça dele latejava, enquanto lembranças de uma vida que ele viveu, e outra
que ele imaginou se misturavam. A lanterna em seu bolso, que ele pegou para
comprovar, tinha o selo do acampamento. Podia ver cenas de sua infância com os
avós com tanta clareza quanto podia se lembrar do seu aniversário de dezessete anos
ao lado dos pais.
O
garoto gritou e se debateu, apertando sua cabeça e tentando encaixar as
lembranças de forma que fizessem sentido. Depois que seus avós chegaram e o
levaram de volta para casa, ninguém nunca mais teve notícias dele, assim como
também nunca souberam do que acontecera naquela tarde, em uma margem do rio
Solimões.
******SPOILERS******
ResponderExcluirQue conto fantástico! Adorei a riqueza de detalhes e maneira na qual você descreve as sensações menino. Achei também que não foi clichê, porque por ser o conto sobre a Iara eu esperava um final no qual ele fosse arrastado para a água. Ao invés disão você deixou uma dúvida no ar. Perfeito.
Muito obrigada, Beto! Eu reescrevi esse conto um monte de vezes, até porque eu estava escrevendo ele para um concurso e tinha limite de caracteres. Que bom que gostou!
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