Tenho tido sonhos recorrentes com aviões. Não é o típico sonho onde você está viajando de avião e ele cai; em meu sonho, estou caminhando normalmente pelas ruas de Floripa, minha cidade natal, indo na padaria, locadora, escola ou qualquer lugar que meu subconsciente queira trazer da minha infância. Essas caminhadas tranquilas são sempre interrompidas pelo barulho do avião. A máquina corta o céu, há fumaça ou um claro descontrole da aeronave que a faz parecer muito mais rápida e muito mais perto do que deveria.
Nesses momentos, é geralmente quando as pessoas ao meu redor irrompem em pânico e a correria se inicia. Essa versão do sonho é a menos ruim, pois prefiro caos compartilhado do que pânico solo. Em outras versões, infelizmente mais comuns, ninguém reage e continuam seus afazeres, enquanto eu fujo no mais completo desespero para escapar do avião cuja rota de queda está determinada a me seguir.
O avião sempre acaba me atingindo, não importa onde eu esteja; ele me fareja e irrompe ao chão ao se perceber da minha presença. Primeiro, um sonho tranquilo; depois, o barulho da aeronave. E, então, como sempre, meu desespero e corrida infâme, destinada a ser um fracasso. E a escuridão.
Trabalho como analista de projetos em uma grande empresa de alimentos orgânicos em Belo Horizonte, o que nada deveria ter a ver com meu “problema” de sonhos recorrentes. Entretanto, desde que mudei de setor (de contratação de fornecedores ligados à fabricação de equipamentos acabei migrando para o departamento de marketing), as coisas ficaram… estranhas. Porque, no fim das contas, ir para o marketing não significava somente um salário maior e colegas mais interessantes de se conversar, significava também viagens de trabalho. Viagens de trabalho para vários lugares do Brasil, viagens de trabalho… em aviões.
Apesar dos sonhos terem começado já na pré-adolescência, nunca me considerei de fato com medo de voar, parecia até algo que gostaria bastante, sentir-me nas nuvens por um instante era uma imagem e sensação providas do extraordinário. Sentia, sim, certo desconforto ao ouvir o barulho de aviões, Belo Horizonte é Belo Horizonte, o barulho de aeronaves cortando o céu é relativamente comum. Mas era um desconforto sabido de bobo, a separação entre sonho e realidade era bastante clara para mim.
Ao migrar de setor, no entanto, e saber de antemão que eu acompanharia o time de criação para um evento no Paraná, foi como se uma chave virasse no meu cérebro. Nós iríamos de avião.
Uma realidade comemorada por meus colegas de trabalho, acostumados a terem passagens de ônibus pagas pela empresa, mas não voos. A empresa estava crescendo, destacando-se no setor e além disso, era ano seu ano de aniversário. Era imprescindível ir ao evento, não havia escolha. Passei a dormir mal. Eu, que nunca fora o tipo de homem com dificuldade para dormir, passara a encarar o teto escuro do quarto com a sensação de peso no tórax, de início leve, fortificando-se com o passar dos dias; não mais tive meu sonho recorrente, porém, isso não me tranquilizou. Não só porque tais sonhos apareciam pouquíssimas vezes no ano (em alguns, nem surgiam), mas porque o pessimismo que informava que meu cérebro estava carregando todo o presságio lírico para o dia do embarque, como uma criança esticando o elástico do estilingue ao máximo antes de matar um pássaro.
[...]
Estou olhando para o aeroporto. Diferente da maioria das vezes, não consegui manter uma conversa com o Uber ou ficar no telefone com minha esposa aproveitando a costumeira animação e energia que qualquer outra viagem teria trazido. Falei em sílabas, a bola na minha garganta tornando quase impossível a realização de algum som. O barulho vindo de uma aeronave cortando o céu troveja e me sinto sugado para meu pesadelo cotidiano.
— Cê tá bem, moço? — um senhor de cabelo branco fala e tento voltar a mim mesmo. Novamente, as palavras nem mesmo me fogem, elas não saem, então assinto e dou alguns passos em direção à entrada. Os sons a minha volta desapareceram, meus ouvidos estão tão tapados que minha cabeça parece esmagada de tanta dor.
São só sonhos, sei que são. Não há nenhum tipo de lógica ou pensamento racional que justificaria essa cadeia de reações. É o transporte mais seguro do mundo contra sonhos irrisórios de significado; é algo tão estúpido que nem considerei sequer mencionar isso na terapia, onde minhas sessões quinzenais só existem para pegar receita.
Preciso me apressar logo e acabar com isso. Mas sei que ficar esperando horas lá dentro daquele mundo descomunal e desordenado do aeroporto só iria piorar o meu estado mental. Verdade seja dita, a imagem de meu avião cair era terrível, mas a visão de uma aeronave cair nos prédios do aeroporto, atraída pela força voraz de meus sonhos recorrentes, era apavorante, insuportável. Aqui mesmo, perto dali na área de desembarque de Ubers e táxis, com metros ainda a percorrer para chegar efetivamente dentro do aeroporto, a angústia e o conhecimento tão desesperador que poderia muito bem ser profético, é voraz, paralisante; imagino em alta resolução a aeronave errando o pouso na pista, atravessando a construção cheia de pessoas à espera de suas viagens e batendo de frente comigo, o motivo real da tragédia.
Talvez seja isso. Deve ser isso. Sonhos recorrentes não criam-se do nada. Se minhas três décadas de vida me alertaram com tanta precisão sobre uma possível tragédia, não seria insano ao menos considerar. O suor, arritmia e pânico crescente, crescente e crescente não devem ser por nada.
“É ridículo!”
Mas eu não consigo mais respirar. A paralisia parece voltar atrás só quando forço meus músculos a moverem minhas pernas para me afastar. Longe. Retorno lentamente para perto dos carros, ignorando os olhares sobre mim. O suor, com ou sem lágrimas (já não sei mais), atrapalha minha visão, porém mantenho-me na missão de me proteger, proteger a todos. Quanto mais perto eu ficar dali, maior o risco que todos correriam. O avião rasgaria aquela rua e aqueles pedestres, jogaria os carros por incontáveis metros e destroçariam o que um dia fora eu.
Afasto-me. Afasto-me e a lucidez parece voltar pouco a pouco. Já consigo respirar, apesar de ser arfadas de ar dignas de um afogado. Meu rosto está molhado e por causa disso, a brisa da cidade me é fria contra a pele recém-barbeada. Vou ligar para o meu gerente e explicar que fiquei doente, o que na medida das circunstâncias, não é mentira, afinal, estou quase em trapos, a ponto de deitar no meio fio e deixar a inconsciência me tomar.
Mas preciso ir em frente. Voltar à rodoviária, pegar o primeiro ônibus intermunicipal e chegar à minha cidade, à minha casa e tomar comprimidos para dormir como desculpa para não falar com minha esposa sobre a explicação da minha presença.
Minha visão está turva, o corpo sobrecarregado; é um milagre eu estar caminhando. Mais um barulho de avião surge dos céus, movendo-se em direção às nuvens, e, de repente, vejo as letras V e W, emolduradas por um círculo; as últimas letras que enxergo antes do Volkswagen me…-
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Por: @blumcamp
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