Há alguns anos, a série Round 6 (Squid Game, em inglês) estreou e virou febre global, se tornando a série mais bem-sucedida da história da Netflix. Eram tantas pessoas falando sobre que acabei assistindo poucas semanas após a estreia. Assisti o primeiro episódio, achei muito bom, excelente, mas mais do que isso, fiquei pensativa. Acabei a primeira temporada e continuei a pensar na série. Nos momentos desesperadores e de quebrar o coração, nos personagens complexos, porém, principalmente fiquei pensando no horror de uma vida financeiramente insustentável que permeia todos os personagens e boa parte da população na vida real. Porque no fim das contas, ter ou não dinheiro é a diferença entre o conforto e desconforto, entre contar moedas para sobreviver até o fim do mês ou não, entre equilibrar gastos de cartão crédito com a delicadeza com que lida com uma bomba e quem vive, entre a dignidade e não dignidade, entre viver e morrer.
É difícil. É real.
Há poucos meses, a segunda temporada de Round 6 estreou e todos esses pensamentos voltaram à tona. Farei um pequeno resumo da premissa para quem ainda não viu. A série coreana acompanha um grupo de pessoas endividadas, financeiramente falidas. Elas são convidadas a participarem de competição onde elas vão jogar jogos infantis em troca de um prêmio alto em dinheiro (45,6 bilhões de won, o que equivale a cerca de R$ 191 milhões.). Sua vida mudaria para sempre, entretanto, se você perde um jogo, você morre.
Só com isso, dá para se ter uma ideia do nível de desespero dos participantes. O protagonista Gi-hun (jogador 456) é viciado em apostas e deve milhões de won para bancos e agiotas. A vida dele corre risco e não há saída. Até mesmo o futuro com a filha é ameaçado, pois que juiz no mundo vai dar a guarda para uma pessoa falida como ele? Se sua vida está no fundo do poço, por que não apostá-la? Os jogos de Round 6 são um inferno, mas a vida fora deles também é.
Este ano, li algumas reportagens da BBC sobre pessoas viciadas em apostas e que acabaram perdendo tudo. São diversos artigos e entrevistas cheias de angústia. Pessoas vendendo casas, divórcios, esvaziamento de contas bancárias, heranças dilapidadas, mentiras, vergonha. Em meio a esse assunto, assisti a um vídeo sobre uma mulher que chegou a dever R$ 400 mil, entre bancos, agiotas, familiares e amigos. A violência dos cobradores e a pressão psicológica chegaram a tal ponto que ela colapsou, entrando em estado catatônico tão severo que precisava usar fraldas. Quando as pessoas chegam nesse vídeo de dívidas, a depressão e ideação suicida são comuns. As pessoas estão sendo destruídas por um vício socialmente aceitável.
Quando a série estreou em 2021, as bets e jogos de azar online (como tigrinho, Blaze e tantos outros) já estavam tendo repercussão, mas só depois viu-se realmente o nível de destruição econômica que elas podem trazer. Hoje, 1% do PIB brasileiro concentra apostas online, bilhões e bilhões de reais jogados fora. São famílias deixando de comprar comida e outros básicos para focar em jogos de azar. Obviamente, é necessário uma discussão sobre responsabilidade individual, mas se tem algo que sabemos sobre o ser humano é que ele é manipulável. TV e internet encontraram a galinha dos ovos de ouro nas bets e jogos de azar online e divulgam sem regras e vendem o sonho de um sucesso financeiro sem precedentes.
Hoje, as pessoas perderam quase que completamente a esperança de mudar de vida pelos meios convencionais. Estudar, conseguir um emprego e fazer fortuna não é possível para a grande maioria. Um diploma de faculdade já não vale mais o quanto antes, trabalha-se muito mais por menos, o poder de compra se evaporou, casa própria inatingível, desemprego destruindo vidas; tudo está caro e nada é suficiente. Dez horas de trabalho, onze, doze, não são o suficiente. O 1% continua 1% enquanto choram como precisam cortar custos de suas empresas. Nesta situação de desespero, alguém que se deu conta de que seu trabalho desgastante não irá lhe proporcionar nada além da sobrevivência, passa a ser compreensível porque quer tanto acreditar que existe outro jeito.
Seja em bets, horas extras, segundo e terceiros empregos, a explosão da renda extra, a vida atual virou um eterno medo de nunca ter o suficiente e uma batalha diária para lutar contra essa maré que nunca vai embora. As pessoas querem desesperadamente acreditar que as coisas podem mudar, que o salário mínimo que elas ganham todos os meses logo será um pesadelo esquecido enquanto aproveitam a chuva de dinheiro que as soluções mágicas trazem. Só que não existe magia, só existe o ônibus e metro lotado dia após dia, as horas intermináveis e trabalho acumulado, e se não for isso, é o desemprego batendo à porta trazendo consigo a porções menores de comida, o aviso de despejo e as faturas de cartão. A esperança faz as pessoas ficarem de pé só para então incinerá-las. Elas querem acreditar pois precisam acreditar.
Depois de tantas crises econômicas, é de se imaginar que o torpor e falta de soluções para os problemas do capitalismo tardio fossem ser transpostos para a arte. Mais do que manchetes em jornais de grande circulação ou chamadas televisas, o colapso do padrão de vida e estatização social ferrenho é a realidade de famílias e indivíduos espalhados pelo globo. Em 2020, Parasita, um filme sul-coreano tornou-se o primeiro filme estrangeiro a vencer na categoria de Melhor Filme no Oscar. Para não coreanos, hoje é ele é basicamente o primeiro contato com o cinema produzido, assim como Round 6 é também o primeiro contato da maioria com a televisão coreana. Ambos os sucessos estrondosos que tacam uma visão impiedosa sobre a situação desigual de classes mostra que o desamparo vai além de fronteiras.
Seja em bets, horas extras, ou um segundo emprego, a explosão da renda extra, a vida atual virou um eterno medo de nunca ter o suficiente e uma batalha diária para lutar contra essa maré que nunca vai embora. No fim das contas, é como diz aquele ditado, na corrida do ouro fica rico quem vende pá.
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