Quando cheguei em casa, a Sofia, minha gata, já me esperava no tapete da sala. Seus olhos julgadores me seguiam, fitavam-me tirar os sapatos para entrar, como fazia há vários anos, desde que chegara. Na cozinha, preparei a comida dela misturada com pó calmante para deixá-la tranquila, pois era dia de tosa. Era um dia sempre especial e terapêutico, tanto para mim quanto para ela. Tudo é feito por mim e em casa mesmo, num cantinho que eu mesma projetei; gatos são extremamente limpos, mas eles também envelhecem. Quando eles param de fazer a autolimpeza devido a problemas com a idade, eles inevitavelmente vão precisar ir para a tosa. Se eu acostumá-la desde já, ela não vai ficar estressada no futuro.
Sofia me seguiu até a cozinha e partiu para a tigelinha dela, com ração premium de carne e frango. Antes, ela hesitava antes de cada refeição, ficava à beira numa aura de desconfiança reservada a detetives em cenas de crime. Nosso relacionamento se normalizou, no entanto. Ela é a minha melhor amiga e eu sou a melhor amiga dela.
Ela começou a ficar mais sossegada e lenta, peguei-a no colo e beijei-lhe a cabeça. Acariciando as costas de pelo cinza, segui pelo corredor e cheguei ao quarto de Sofia. Caixa de areia eletrônica em formato de ursinho, caminhas aconchegantes e escaladas e obstáculos para se divertir. Havia também alguns brinquedos espalhados e caixas de papelão. A janela estava aberta, dando boas-vindas ao sol da tarde. Dou mais um beijo na cabeça dela. Era mais um dia perfeito.
Ao atravessar o quarto, entrei no “banheiro” privativo da Sofia. Era basicamente uma área de banho e tosa, uma suíte que eu tinha adaptado após várias visitas em pet shops. Coloquei-a no balcão e comecei a escová-la, os pelos se acumulando no chão e na bancada. Passei a escova de pelos pelo dorso e peito, ela tranquila, só resistindo poucas vezes, indo de um lado para o outro ou ameaçando saltar da bancada antes de eu segurá-la de forma leve. Ela estava com sono, quase lânguida. Sofia se deitou, então foi fácil cortar as unhas dela. Com uma dor no coração, levei-a para o outro lado do banheiro, onde ficava a banheira e a ducha.
— Já vai acabar, anjinho. Já vai acabar!
Depois de mergulhar o corpo dela na água, apliquei shampoo de gato e esfreguei com delicadeza, transformando-a numa bola de espuma. Usando um copo, enxaguei e usei a ducha acoplada à parede para lavar o restante. Enrolada na toalha, levei Sofia de volta à bancada. Enquanto colocava o protetor de orelhas, a imagem dela lutando e mostrando os dentes surgiu na minha cabeça, na primeira noite dela comigo. Fora um dia terrível, ela estava longe de ser a gata calma e amiga que havia se tornado futuramente. Miava com fúria, rosnava e as garras arrancavam sangue, meus braços viviam com cortes e arranhões constantes e, não raras vezes, eu jurava que ela mirava as garras no meu pescoço. A sorte e a agilidade salvaram minha vida várias vezes. Mas o tempo é rei. Com o passar das semanas e meses, Sofia percebeu que eu a amaria de qualquer jeito. E com o passar dos anos, que isso seria para sempre.
Sequei Sofia com o secador, ainda afundada em lembranças. Logo no início de nossa amizade incialmente complicada, eu rasgara a foto de Madeleine, minha antiga vizinha, que eu guardava na minha escrivaninha, certificando-me de que Sofia visse. Tomei para mim que era um ponto de virada. De entendimento. Destruí as roupas de Madeleine, junto da bolsa e sapatos. Qualquer item que me ligasse à ela ou que fizesse Sofia se lembrar dela. Fazia tanto tempo. Um inferno tão grande que, no fim e apesar de tudo, valeu a pena. Os dias eram bons. O sol no meu rosto e os abraços de Sofia fazia todo o desespero e depressão daqueles dias sombrios serem pequenos. Eu estava feliz e Sofia estava também.
Terminada a secagem, tirei da cabeça dela o protetor de ouvido. Ela estava muito bem e bonita, não houve necessidade de aparar os pelos, resolvi deixar para o próximo mês. Tranquei o banheiro. Já no quarto dela, coloquei minha melhor amiga na caminha lilás e massageei seu pescoço, ela não ligou muito, os olhinhos já se fechavam para dormir. Peguei o Squirtle de pelúcia que ela adorava e deixei junto dela na caminha.
Observei Sofia por longos minutos. Às vezes, tinha pesadelos e pensamentos obsessivos do feitiço se desfazer por alguma razão, e Sofia voltar a ser a Madeleine, a mulher bonita, descolada e perfeita que se recusava a ser minha melhor amiga, apesar de todos os meus esforços e sacrifícios. Porém, nada aconteceria. Meus estudos e práticas mágicas eram excelentes e, muito mais do que eles, eu amava a Sofia e ela me amava de volta. Ficaríamos bem.



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