— Pai, não precisa se preocupar. Vai ficar tudo bem. — Afirmei novamente, tentando me convencer de que aquelas palavras eram verdadeiras. “Vai ficar tudo bem, já está tudo bem”, repeti mentalmente.
Abri a geladeira sem encarar seu conteúdo, apenas procurando algo bem específico: uma latinha de coca do congelador. Encostei a superfície fria no meu olho dolorido e quase gemi com o estímulo doloroso imediato.
— Vocês brigaram, não foi?
Não consegui responder meu pai. Mudei de assunto, perguntando como estava sua caçula, como tinha sido o primeiro Natal com a família da minha madrasta, se ele tinha gostado. Amenidades para desviar do tema que ele queria trazer.
E por um tempo, achei que tinha funcionado. Ele respondeu minhas perguntas, estendeu o assunto. A bebê estava bem, obrigado. A família da nova esposa era adorável, e ele estava feliz de finalmente estar conseguindo seguir a vida depois de anos da partida de minha mãe. Tudo tinha sido repentino, ele estava reaprendendo como cuidar de um bebê já que eu já estava com meus 23 anos e ele era muito novo quando eu nasci.
Encostei a testa na porta aberta da geladeira enquanto o ouvia falar, apreciando o ar gelado que saía de dentro dela. Amenizava o mormaço que indicava a chuva iminente.
Conversar com meu pai era muito natural para mim. Eu o amava bastante e após a morte da minha mãe, nos aproximamos ainda mais. Se fosse em outro momento, eu me jogaria no sofá e passaria horas falando com ele. Mas hoje não ia dar.
— Que bacana, pai. Humm, olha eu vou ter que desli—
— Ele te bateu, não foi? — A interrupção abrupta deixava bem claro que ele não ia deixar o assunto para lá.
— Já está tudo resolvido, tá? — Respondi gentilmente. Eu sabia que a preocupação dele era genuína. — Ele nunca mais vai fazer isso.
— E você vai acreditar nessa conversa, de novo?
Levantei a cabeça e encarei meu namorado, seus olhos vidrados em mim.
— Pai, o senhor não entenderia...
— Então explique de um modo que eu entenda.
Suspirei, fechei a geladeira e fui em direção ao quarto.
— Olha, pai, minha vida está uma verdadeira zona, eu sei. Estou organizando as coisas, resolvendo tudo que tem para ser resolvido. Não esquente a cabeça com ele, tá?
— Por mim, esse desgraçado poderia morrer! Esquento minha cabeça é com você. Ah, quer saber, estou indo praí.
Quase deixei o celular cair quando meu pai falou isso.
— Pai, para com isso. Já é quase meia noite do dia 31. O senhor está com a família da sua esposa, em outra cidade, vai deixar ela com uma bebê-recém nascida por causa dos meus problemas? Não, não, isso não é certo. Eu sou adulta, eu me viro.
— Não tem discussão, eu estou indo. — E desligou, sem que eu tivesse tempo para argumentar mais.
Apesar do corpo dolorido. Juntei todos os objetos jogados pelo chão do quarto. Fui na cozinha buscar um saco de lixo preto e joguei ali dentro tudo que estava quebrado.
Se eu fosse bem rápida, conseguiria deixar a casa apresentável antes do meu pai chegar aqui e surtar. Era cerca de 20 minutos da cidade que ele estava até a minha casa.
Peguei o rodo, um balde e um pano. Enchi de água e comecei a limpar o chão do quarto. Virei o colchão, troquei as roupas de cama, recolhi roupas sujas, jogando algumas no saco de lixo sem dar uma segunda olhada. Troquei a água do balde e passei o pano no resto da casa. Estava jogando um perfume de ambiente quando ele bateu na porta.
Atendi timidamente, passando a mão no cabelo possivelmente desgrenhado e sem imaginar como meu rosto poderia estar.
— Meu deus! — O rosto dele era uma máscara de lividez. — O que ele fez como você?! Aquele maldito!
Num ímpeto de raiva, ele passou por mim, bradando:
— Cadê você, seu maldito!? Vem aqui encarar alguém do seu tamanho!
— Pai, para. — Pedi, indo atrás dele. — Ele... ele não está mais aqui.
Meu pai estava com as mãos fechadas em punho, a respiração pesada. Eu vi as lágrimas em seus olhos, comunicando um palpável sentimento de impotência.
— Eu falei que não precisava vir.
Ele me encarou, pegou meu rosto entre as mãos com uma delicadeza comovente. Olhou para cada canto dolorido antes dos seus olhos encontrarem os meus.
Eu só pude fazer um gesto de negação com a cabeça.
Por fim, ele me soltou, indo em direção à cozinha.
— Vamos pegar algo gelado para colocar no seu olho.
Senti meu coração gelar quando ele simplesmente abriu a geladeira.
Olhou para dentro.
Olhou para mim.
— Amor, tá tudo certo?
Nós dois olhamos em direção à porta ao mesmo tempo.
Meu pai fechou a porta da geladeira, e passou o braço por cima do meu ombro e me encaminhou para fora de casa.
— Tudo certo. Vamos filhota?
— Você quer que eu vá passar a virada de ano com vocês?
— Claro. Não é, amor?
— Claro, seria um prazer. — Respondeu minha madrasta que segurava minha meia-irmã e encarava meu rosto machucado. — Tá tudo bem?
Assenti.
Ela entrou no carro, na parte de trás e acomodou a pequena no bebê conforto.
— Amanhã te ajudo a dar um jeito nas coisas. — Sussurrou meu pai em meu ouvido.
Pela janela do carro, vi a minha casa se afastando cada vez mais, até virarmos uma esquina e eu não mais poder vê-la. Os fogos coloriram o céu ao mesmo tempo que as primeiras gotas de chuva bateram contra o vidro. Meu pai tirou uma mão do volante para segurar a minha.
— Feliz Ano-Novo. — Me desejou e seus olhos encararam os meus no retrovisor.
O olhar fixo me fez pensar no olhar frio, mortiço, do meu namorado dentro da geladeira.
— Feliz Ano-Novo. — Respondi. — Feliz Ano-Novo para todos nós.
Por @ladythaw
Nenhum comentário: