Um fusca apareceu no pântano.
Um fusca azul, a placa do veículo raspada. Azul céu, um céu de cor pálida, esfumaçada, mas ainda assim azul, diferente do céu daqui que tem um tom permanentemente cinzento. O veículo está sobre um rochedo, um largo rochedo retangular, chão arenoso e cheio de pedras, pequeno pouco maior que o veículo. Lá no meio do pântano, o fusca se exibe como uma decoração incomum.
Não há rastros, qualquer indício de como o fusca foi parar lá. Obviamente, ninguém pode tê-lo dirigido até aqui - as águas escuro-esverdeadas de mais de três metros de profundidade seriam uma espécie de empecilho, assim como a falta de pontes ou qualquer meio de algo grande chegar ao rochedo. Certamente, ninguém poderia tê-lo colocado no meu pobre barquinho que só cabe duas pessoas (ainda está amarrado onde deixei noite passada). Carvalito, meu cãozinho, está dormindo pacífico em sua casinha construída com uma caixa de bananas; não há nenhum rastro no barro que indica alguma inquietação.
Uma balsa? Olho para o horizonte permeado por árvores, mata densa e o tapete verde pantanoso, pontilhado por galhos, troncos e rochas. Não há espaço para uma balsa. O canal que se abre para a propriedade é curto, e o barulho do motor teria me acordado num pulo.
Coço minha barba por fazer, está molhada pois havia visto o fusca pela janelinha do banheiro e vim correndo pra cá. Olho novamente para Carvalito, em paz, as flores desérticas nos vasos continuam coloridas, o céu é cinzento e minha casa parece intocada, precisando de consertos e uns enfeites aqui e ali, mas intacta. Tudo normal. Havia checado tudo, as fechaduras e janelas, os armários e o baú com armas e facões.
Vai lá. Uma vozinha na minha cabeça me perturba. Vai lá. Bem, devo ir mesmo, esse tipo de coisa tem que ter alguma explicação e por melhor que fosse, ninguém pode ir deixando os carros na casa dos outros. E se não fosse de ninguém, eu poderia simplesmente pegar pra mim e usar o dinheiro pra comprar mais materiais pra arrumar minha casa (quem sabe fazer um cercadinho que minha saudosa esposa sempre quis?).
Desamarro meu barquinho, velho, mas bom, e começo a remar. Sei o caminho exato dos remos para não bater nas pedras submersas e a direção que preciso seguir para o barco não encalhar. Começa bem, o rochedo está somente a uns 100 metros de distância, algo que consigo percorrer em pouco tempo, mas logo, a água começa a ficar dura. Tenho que fazer o dobro do esforço para percorrer a mesma distância, e vai ficando tão difícil que sinto o suor escorrer pelo meu rosto em jorros sem que meu barquinho se mova um centímetro sequer.
Tiro o lenço do bolso e seco a testa, olhando para o rochedo. Ainda falta metade do caminho, mas agora consigo ver o veículo mais perto, notar coisas que não havia notado antes, como uma pessoa sentada no banco de trás. Não consigo distinguir suas feições, está estranhamente escuro dentro do carro e o ângulo dele faz com que o banco do motorista fique na frente.
Uma sensação... se apossa de mim. Agarro os remos, incerto do que fazer. A pessoa não está se mexendo. Está dormindo? Morta? Porque está no banco de trás de um carro que surgira no meio deste nada?
Remo para frente em um furioso ímpeto para resolver este mistério, porém, como antes, a água está esquisita, contrariada, desta vez, praticamente impossível de ser vencida; o barco não se move, os remos não avançam, estou empurrando uma tonelada de força que não deveria existir. Agarro os remos com mais força e ao invés de empurrar para frente, puxo para trás e o barco desliza sem dificuldade para trás. Assim, volto sem tirar os olhos do fusca, distanciando-se com os vidros tornando-se mais escuros.
Não consigo parar de observar o fusca. Carvalito está acordado e tento alguma normalidade ao retirar sua coleira (prendo-o todas as noites com medo dele cair nas águas do pantâno nas madrugadas). Quando volto minha atenção para o rochedo, o fusca ainda está lá.
Bobagem, a vozinha na minha cabeça me diz. Não passa de bobagem.
Volto para dentro tentando pensar em algum plano, mas não há nada. O telefone fixo, o único que eu e minha falecida esposa tínhamos, está mudo. Na época, tentamos nos afastar de qualquer tecnologia e abraçar a vida aqui, nós e o pântano, a mata, as nuvens cor de granito. Retorno o telefone ao gancho, coço o queixo. Deste corredorzinho, vejo o quintal emoldurado pela porta aberta, o chão de barro e depois a sopa verde-musgo que é o pântano. Mas há algo mais. A corrente do cachorro está esticada. Fico parado igual estátua; a corrente está esticada. Mas eu havia libertado Carvalito. Será que ele está mordendo a ponta da corrente com a coleira e puxando?
Atravesso o corredorzinho e, ao pisar no chão de barro, quase volto pra trás porque tem um homem na coleira, branco igual osso e ele está esticando a corrente como um rottweiler lutando pra se livrar da prisão; quando me vê, ele vem pra cima de mim, meio agachado, meio corcunda, mas numa velocidade que eu não achava que era possível. Eu corro, o coração saltando da boca, corro pelo corredorzinho até bater sem querer na porta do quarto. Me viro e o homem está na soleira da porta, a corrente esticada até o limite o impede de entrar.
Sons guturais saem daquela boca, um estranhíssimo som entre latidos e gritos humanos. Ele me encara com fúria, algo tão intenso sinto essa força me pressionar contra a porta; levo o braço para trás, abrindo a maçaneta sem ver e entro no quarto; fecho a porta não, eu não quero perder a coisa de vista.
Os sons estão mais altos, muito mais altos, como se ele estivesse bem aqui ao meu lado, berrando no meu ouvido. Todos os meus pêlos estão eriçados de adrenalina e medo, o quarto está lotado de berros, mas a coisa ainda está lá longe na soleira da porta tentando se soltar. Abro o baú e pego uma espingarda, as mãos meio tremidas ao encaixar a bala deformada no lugar correto.
O tiro com uma precisão que iria me impressionar se não fosse a situação. Vai bem no meio da testa e ele já cai. Sou péssimo em tiros, tentava acertar latas e, às vezes, galinhas para jantar, mas minha esposa sempre desistia de ficar esperando meu acerto e acabava matando os bichos com um facão. Ainda segurando a espingarda, eu vou devagarzinho, preciso passar por ele pra sair. Não há movimento, nem respiração, nem nada.
O quintal está vazio. Carvalito não está aqui. Giro nos calcanhares para ver os arredores, mas não há nada. Meus olhos se voltam ao homem caído, nu, pálido e encoleirado, os olhos abertos e parados olhando sem ver o céu, olhos verdes que em breve, estarão cheios de besouros.
Eu não devia tê-lo matado. Não havia escolha, mas eu não devia. Um agouro me abraça bem forte, me sufocando como uma cinta de aço contra as costelas. Devia enterrá-lo, lhe dar um funeral, enfeitar a coisa toda com as flores do deserto; por Deus, ele pode só ter tido um surto, um doente, um homem em possessão demoníaca, por Deus e por todos os santos.
O fusca está no mesmo lugar, claro, e a única pessoa viva por aqui até dois minutos atrás em mais ou menos 200 quilômetros era somente eu e o homem... e a pessoa no carro. Ele não poderia ter saído dele, nadado pelas águas do pântano e chegado em terra a tempo de me atacar.
Minutos depois, estou novamente em meu barco e, de novo, o barco não quer mais ir em frente, não há nenhum movimento ou esforço que superam as águas. Querendo pôr um fim nisso, eu largo os remos para lá e mergulho.
Não gosto de nadar aqui, me sinto sujo, não só corpo, mas a alma também. Não é lugar de gente nadar. Mas eu preciso.
Quando chego às rochas, sinto meus joelhos se esfolarem na superfície e vou escalando a arfando; o fusca está igual, a pessoa continua lá dentro, os vidros obscurecidos. Ao abrir a porta, eu me deparo com um homem de rosto dolorido, não de corpo, mas de coração, os olhos castanhos e familiares mergulhados em desesperança.
Nosso sussurro, o meu chocado e o dele lamuriante, é pouco mais alto que a brisa do pântano.
"Como acabamos assim?"
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Por: @blumcamp
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