Filha

 



Minha filha estava tentando me matar.

Já fazia um tempo que tinha essa suspeita e sua atitude normal, cada gesto e fala demasiadamente naturais só acentuavam a minha suspeita. Ela estava atuando. Tatiana estava atuando, uma interpretação digna de um Emmy Award; ela com seu vestido estilo anos 1920 preto e com bolinhas, com seu cuidado exagerado ao fazer seus cílios e atenção ao combinar os temperos certos na panela e ao lavar e guardar os utensílios de chá, ela, Tatiana, queria ser, ou melhor, queria aparentar ser a filha perfeita. Estudiosa, trabalhadora, educada, prendada, altruísta. Mas eu sabia melhor.

Tudo aconteceu aos poucos.

Quando engravidei, ela pareceu genuinamente feliz. "Finalmente vou ter um irmãozinho!", disse com uma expressão como se tivesse acabado de ver um coelhinho em um jardim florido (ela ama jardins e flores). Ela me comprou um livro sobre alimentação para grávidas; semanas depois, já estava falando sobre nomes (ela me mandou links com nomes latinos e italianos unissex); meses depois, já me fazia pratos com "nutrientes completos" e sucos "muito nutricionais". Tatiana é muito boa na cozinha, mas eu também sou muito boa na cozinha, o que, às vezes, me obriga a avisá-la que vou cozinhar sozinha certos dias para encontrar a paz no que há muito tempo fora meu cômodo favorito.

Claro, ela cozinhava bem. Todos os pratos bem montados (e posteriormente postados no Instagram) eram deliciosos, coloridos e combinavam com os sucos. Eu queria que ela parasse com isso, mas eu não disse nada. Só queria ficar sozinha com meu futuro bebê, acariciar minha barriga, perder-me em tantos cenários que eu compartilharia com ele, toda uma nova vida. No entanto, Tatiana nunca aceitou isso, não de verdade, ela não entende que o reinado dela acabou, nunca começou de fato, ela não consegue conceber o fato de que sua atuação como filha perfeita não passa disso, uma atuação. Não importa o que ela faça, eu a conheço, ela não é confiável, ela odeia, ela maltrata, ela é má. Tatiana não queria que o bebê nascesse.

Ela trabalhava em uma concessionária vendendo carros de meio milhão de reais ou até mais caros (quem não venderia com aquele rosto e cintura fina? A faculdade dela não valeria nada sem o rostinho bonito dela); toda sexta-feira ela saía do trabalho e ia ao supermercado para fazer as compras da semana, o que era bom, pois apesar de eu odiar as escolhas de produtos e marcas que ela trazia, era uma noite em que ela nos deixava em paz.

Nessas noites, eu rabiscava coisas no caderno, brinquedos, bermudinhas, sapatinhos, escrevia nomes, brincava com as letras, mudava-as de lugar; e eu amava. Naquela sexta-feira em específico, Tatiana chegara e mal colocara as sacolas no balcão, e já começou a preparar um suco. Uma "receita nova", disse toda feliz, sorrindo, claramente querendo exibir os dentes branquinhos depois do clareamento que fizera dias antes.

Eu disse "Claro" e dei de ombros quando peguei o copo. O suco era roxo, um roxo bem escuro e provei. Tatiana me olhava com expectativa, o que hoje, devia ter me dado o alerta, e eu dei um segundo e terceiro gole para ela ir embora. Falei à ela que gostei e fiz uma expressão satisfeita e ela sorriu e se virou para a cozinha.

"É bom, Tati, mas tem um gosto aqui que não consigo saber o que é..."

"É o manjericão!" ela gritou da cozinha "Quer mais?"

Eu não queria mais e não tinha acreditado nela. Foi naquele momento que eu percebi o desespero dela por saber que eu sempre escolheria o bebê, nunca ela; saber que, em poucos meses, nada do que ela fizer significaria alguma coisa, que toda a atuação de menina boa não deu certo e nunca daria. Era mais fácil acabar comigo, acabando junto com o bebê também. Tamanha ardilosidade deveria ter me espantado, porém, acho que bem no fundo eu sabia do que ela era capaz, só não queria admitir o fato.

Peguei o celular e digitei no Google "cianeto", um dos poucos venenos que eu sabia o nome. Aparentemente, ele matava um humano em poucos minutos após a ingestão. Já havia se passado minutos, então provavelmente ela usara outra substância. "Maldita", pensei, "maldita", "maldita" e "maldita". Tentei forçar vômito, não tive sucesso, o coração acelerou as batidas e o suor surgia na minha pele e escorria pelo rosto e braços, minha vida iria acabar porque minha filha preparara um suco de uva para mim. Horas depois, eu percebi que era uma pessoa de sorte porque eu tinha sobrevivido, meu sistema imunológico seria um desafio para Tatiana, mas eu não tomaria outra chance.

Mais tarde, nessa mesma noite, chamei Tatiana para meu quarto. Ao chegar, ela perguntou o que eu queria e eu só disse "Vem aqui."

Coloquei minhas mãos em seus ombros e a encarei. Ela pareceu surpresa e, depois, ainda mais surpresa quando eu a joguei no chão, sua cabeça batendo com força na quina superior do pé da cama. Lembro-me até hoje do olhar dela. O choque, a confusão. O coração partido.

Eu não acreditei naquele teatrinho.

Estava me protegendo. Protegendo o meu bebê.

Todos ficaram em choque com o que tinha acontecido. Uma linda moça com um futuro brilhante desgarrada abruptamente da Terra por um simples tropeçar. E sua pobre mãe grávida e viúva tendo de lidar com essa tragédia nos últimos meses de gestação. Eu havia aprendido com Tatiana a atuar bem, então todos acreditaram em meu rosto vermelho e molhado. Não sabiam que minhas lágrimas eram de felicidade.

As semanas se passaram e não havia nada na casa a não ser eu e o bebê. Era pura alegria, ou melhor, eu lutava por essa pura alegria com unhas e dentes, no entanto, a Tatiana invadia minha mente numa frequência irritante e, admito, assustadora. Quando um som vinha pela casa (um vento batendo a janela ou o gato do vizinho derrubando garrafas no quintal), a Tatiana era a primeira coisa que eu pensava. "Tatiana quebrando tudo como de costume", um segundo depois eu afastava o pensamento, sentindo-me burra. As oito da noite chegavam e eu imaginava onde a Tatiana estava e quando viria preparar o jantar, então, lembrava-me que eu não devia querê-la preparando nada, pois era perigoso para mim e para o bebê e, finalmente, lembrava-me que minha filha estava morta.

As sextas-feiras chegavam e eu listava na cabeça todos os itens que eu queria que Tatiana trouxesse do mercado, já odiando as escolhas esdrúxulas dela, principalmente sua falta de habilidade em pegar boas frutas. Planejava ter conversas com ela sobre isso e até decidia que a partir de então, eu iria escrever a lista de compras do meu próprio punho e obrigar Tatiana a segui-la à risca. Ela provavelmente diria que sim e argumentaria que suas opções eram "melhores" e "mais saudáveis".

Mas Tatiana estava morta. Não havia ninguém para trazer as sacolas.

Passei a cozinhar mais, ignorando cada vez que as panelas, o cheiro de refogado ou literalmente qualquer coisa na maldita cozinha me lembravam dela. A maldita havia me amaldiçoado. Ela não conseguira me arruinar quando viva, então estava obcecada em fazê-lo estando morta. Era uma maldita.

O bebê nasceu e eu não senti absolutamente nada. Havia um grande vazio onde deveria estar um amor de tirar o fôlego, entretanto, eu estava disposta a fazer isso mudar. Eu iria pensar no bebê, unicamente nele e iria amá-lo com todo o fervor, não pensando em ninguém mais, em nenhuma outra pessoa. Em nenhuma outra pessoa ingrata, bruxa, má, terrível.

Bernardo seria a minha vida.

E nos quinze anos seguintes, ele foi. O quarto de Tatiana permaneceu intacto, trancado, a chave sempre no meu bolso, todas as roupas foram rasgadas por mim, mas eu as mantive nos armários. Era importante para eu me lembrar do que uma filha podia ser capaz, para eu me doar para Bernardo sem nunca esquecer que a qualquer momento, ele poderia se transformar em um monstro como a irmã.

Nunca deixei ele entrar no quarto. No entanto, após um cochilo que tirei à tarde, acordei e não encontrei a chave. Os passos de Bernardo surgiram no carpete e eu soube que ele havia bisbilhotado; odiei-o ali mesmo, odiei o adolescente com todas as forças e minha busca forçada por amá-lo, por encontrar esse amor tão distante e escondido nos picos nevados, de repente, me pareceu besteira. Pra que procurar tanto por algo se meu filho é terrível? Se tentar amá-lo não afastou a maldita de meus pensamentos diários, então qual o ponto de tudo isso?

"Então você foi ao quarto da sua irmã." afirmei, a voz um tanto fria. Eu não queria perder tempo fingindo que nada daquilo importava. Importava muito e ele precisava saber do erro que cometera.

"Sim, não havia nada demais lá, não mexi em nada, só... olhei."

Sua voz estava baixa. Ao entrar no meu campo de visão, há uma sombra em seu rosto, uma sombra triste, uma sombra melancólica. Quero perguntar o que está acontecendo, porque está daquele jeito, se era frescura por conta do quarto vazio de sua irmã morta, pra que aquela postura toda capenga, pra baixo? Tatiana se fora há muito tempo, era inútil sequer pronunciar seu nome.

Bernardo levantou um pouco a cabeça e me olhou.

"Mãe... você já ouviu a teoria de que um bebê só recebe sua alma pouco antes dele nascer? Algumas pessoas acham que o feto já tem alma logo depois da concepção, mas outras acreditam que isso não é verdade, que o bebê só ganha uma alma nos estágios finais, quando o corpinho já se desenvolveu o suficiente para recebê-la."

"Do que você tá falando!?" gritei, ao mesmo tempo odiando não estar fingindo controle, mas também querendo que ele me temesse. Diferente das outras vezes, ele se manteve lá, não recuou. A sombra triste estava dando lugar a outra coisa. Algo determinado. Algo que eu não gostava.

"Do que você tá falando?" repeti, desta vez mais baixo. Estou sob controle. Está tudo sob controle.

"A Tatiana tentou ser a filha perfeita e, no fim, não foi o bastante" ele me olhou "mas se eu for um filho regular, talvez tudo acabe de um jeito diferente."

O meu coração bateu forte, rasgando meu peito como rasguei as roupas dela. Ele caminhou em direção ao corredor, como se nada muito alarmante tivesse acontecido, como se eu não tivesse sido reduzida a uma estátua de gelo. Mas antes de entrar no corredor, ele se virou e disse, "Hoje farei o jantar."

Bernardo nunca havia cozinhado antes.







Por:
@Blumcamp

Filha Filha Reviewed by Alana Camp. on março 18, 2023 Rating: 5

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