Ideal

 



O guarda-roupa está cheio de coisas. Blusas de lã, cachecóis de crochê, casacos de couro sintético, blusinhas de seda e outros tantos achados em brechós do centro da cidade e da parte mais ao leste, onde os alternativos criavam lojinhas todos os anos ao lado de bistrôs ao som de Jazz, que quase sempre acabavam falindo. São muitas calças, jeans desbotados, outros rasgados no joelho; lá na parte superior do armário, cobertas dividem o espaço com chapéus que eu nunca usara, a maioria comprados por impulso ou na liquidação do último inverno.

Eu preciso me livrar de algumas coisas. Algumas muitas coisas, mas estou parada olhando para o guarda-roupa há minutos sem me mover um milímetro sequer. Todas as portas do móvel estão abertas, com as roupas amontoando-se umas sobre as outras, escapando para fora como se elas se inchassem e o guarda-roupa estivesse se contendo para não cuspi-las. Muita lã, muito algodão, muito cetim, poliéster, tricoline, denim, linho, um milhão de estampas, um milhão de xadrez, florais, lisos, viscose, Paisley, mais de um milhão de gotas de sangue correndo pelas veias até meu coração, violentamente bombeando vida e futuro e, mesmo assim, eu não sinto nada.

Os dias correm e não há nada. Os armários da cozinha e geladeira estão cheios, tão cheios quanto o guarda-roupa, não há absolutamente nada do que reclamar, porque afinal de contas, tenho tanto. As contas pagas, rotineiramente consistentes nas planilhas financeiras; arroz, feijão, laticínios, carnes (até mesmo as vermelhas e nobres), tudo em seu devido lugar nos armários de cima e no congelador. Os doces, chocolates, guloseimas, os waffles de doce de leite que amava tanto, as pastilhas de limão e leite condensado, a caixa fechada de pacotes de farinha de trigo esquecidas debaixo da pia para eu realizar meu desejo de aprender confeitaria e fazer tortas maravilhosas, com direito à creme de avelã e decoração de morangos.

E não há nada. Efetivamente, verdadeiramente, nada para reclamar, qualquer reclamação se suprime na minha garganta, ela se volta contra si mesma se implodindo pelo absurdo. Porque é um absurdo. Estou feliz. Se me concentrar e focar, mirar em todas as coisas e conquistas, tudo que construí e batalhei, ajustar a mente em realmente analisar os detalhes e enormidades à minha volta, então a conclusão é que estou feliz. Um emprego que sempre quis, coisas que sempre amei, um casamento maravilhoso e um pequenino e perfeito filho agora dormindo tranquilo no berço; não há nada para me entristecer, tudo são alegrias, o sorriso dele inocente e fácil, o abraço de meu marido, o quimono comprado na última sexta-feira que eu sempre me imaginava usando, o canto de um Bem-Te-Vi à minha janela, o modo como o sol atravessa as árvores desenhando sombras no chão; a minha vida é perfeita e eu me tranco todas as noites no banheiro, com uma blusa enfiada na boca para ninguém ouvir meu choro. 

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Por: @blumcamp
Ideal Ideal Reviewed by Alana Camp. on agosto 29, 2023 Rating: 5

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