Os pés raspavam a beirada do edifício, descalços e nus de qualquer segurança auto-imposta, refletida nos braços soltos, leves e raspados, pendentes ao lado de seu corpo envolvido em panos brancos. Só havia o som do vento, sibilante em seus ouvidos, ardendo a pele rosada de seus braços não vestidos. Um inverno antes erguera-se no mesmo lugar e se estendera na beirada, jogara-se como um anjo mergulhando no paraíso, acordando segundos mais tarde em sua cama. O sonho a despedaçara completa e intimamente, e a coragem que tivera dentro dele nunca a encontrava no mundo real. O edifício lhe era, desde então, um monstro com dentes afiados e apodrecidos, que a trucidaria tão dolorosamente que seus gritos surgiriam silenciosos pelo espaço. Mas o vazio, aquele vazio que passara a sentir a todos os dias, manhãs, tardes e noites, crescia descomunalmente e sua ferocidade competia com a morbidez em que ela havia se afundado. Apática, irreal, acordava e pensava seriamente se estava sonhando; se o mundo não havia se transformado num arquétipo surrealista que apenas ela adentrava quando abria os olhos.
Via vermelho. No chão do banheiro. Nos olhos das criaturas em seu quarto que não existiam. Na toalha com a qual se secava e era lavada repetidamente, todos os sábados. Havia vermelho na cabeceira de sua cama e em seus sapatos debaixo dela. Lambia seus braços de maneira que só sabia descrever como terno. Sublime, até. Às vezes, tinha esta cena na cabeça, dela caminhando e as pegadas aparecendo após cada passo, tingidas de vermelho, sua cor favorita. Sem temer o monstro do edifício, o mito que junto das bestas que a perseguiam durante a noite, não existia, não poderia feri-la. Só ela podia fazer isso consigo mesma.
Não há monstros mais letais que você mesmo. E na beirada do edifício, a letargia embrulhou-a em agoniante afogamento e da beirada do edifício, voou ela até as nuvens e mais além, e quando as estrelas reluziram a ponto de arder seus olhos, ela abriu os braços e as pernas como um anjo na neve e se deitou. As estrelas se foram e o céu cinza as escondeu; via as nuvens que de repente, soltaram pingos e logo, ela sentiu as deliciosas pinicadas em sua pele, ficou vendo as nuvens, o céu, o edifício, deitada como um anjo na neve, sentindo tudo e sentindo nada. Oh, no meio do céu cinzenta, ela começou a ver, rever as estrelas; do cinza chuvoso pequenos pontinhos reluziam e veja! Parecia-lhe uma constelação lentamente se formando. “Menina, o que você!?” Certa vez, havia monstros em seu armário, na porta entreaberta, na escuridão de seu quarto; certa vez, dentro de seu peito havia nada, nada além da ausência de si própria. Mas não hoje. “Ah, meu Deus do céu, o que ela fez!?” Hoje, ela veria as estrelas. Hoje, agora, finalmente, ela sentia.
Hoje, ela sentia tudo.
Se se concentrasse um pouco, poderia ter ouvido os gritos ao seu redor.
Quando abriu os olhos, despenteada, arfando em sua cama, ela sentou-se no escuro iluminada somente pelo luar que trespassava a grande janela, os monstros por toda a parte, a escuridão por toda a parte, sua mente agora já se esquecendo do sonho, seu coração tentando resgatá-lo. No meio da noite, ela chorou. Além da janela, havia o edifício. Iluminada pela lua, ela lamentava mais outro sonho desperdiçado.
Hoje, ela sentia nada além de pesar.
Por: Alana Campanha.
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