Desfuturo




Flórida chega na locadora Flag Cat às 8h da noite, quando estou perto de fechar. Usa uma jaqueta de couro preto e por baixo uma camiseta preta com uma ilustração do boneco Chucky, o que me abre um sorriso, pois amo esses filmes. E quem é que se chama Flórida?

Sei disso porque eu sei que ela vai vir até o balcão após escolher o DVD E se fosse verdade e dizer seu nome para que eu possa fazer o cadastro de cliente.

Sei que eu não poderia deixá-la levar um DVD da locadora sem um comprovante de residência, não de um cliente novo sem cadastro. Mas eu sei que vou deixar mesmo assim, pois seu cheiro de baunilha é intoxicante, mesmo do outro lado do balcão, porque seus cabelos lilases e azuis, sua gargantilha preta e maquiagem pesada, mas bem feita me hipnotizarão, porque seu sorriso doce só vai se desfazer quando perguntar "Você está bem?". Eu não vou querer responder porque não quero chateá-la com minhas reclamações, da minha vida depressiva, desestimulante, vazia, tentando fazer meu recente casamento dar certo, mesmo que a única coisa que quero fazer é ficar longe do meu ingênuo marido.

Tento parar de pensar e desvio os olhos. Ter o talento de saber o futuro não é tão útil como poderia ser, não quando o futuro aparece de repente, sem aviso, sem escolha. Eu tento parar de ver as imagens, tento parar de ver Flórida, mas eu continuo sabendo das coisas, vejo e, pior, sinto numa sucessão de imagens sua mão tocando a minha próxima sexta-feira, sinto minha futura eu tendo pensamentos irreais de como uma pessoa incrível como ela poderia ser sequer cogitar ser minha amiga.

Sei que vamos ao cinema porque vamos discutir sobre filmes sempre que ela voltar à locadora. Na terceira vez que pegar um filme, vai me chamar para ver V de Vingança e ela vai amar; eu vou odiar, mas vou amar a companhia dela, sua presença de baunilha e toques em meu braço sempre que achar que vou me perder naquele mar de gente na fila ou nas calçadas pra chegar ao cinema. Eu vou amar cada segundo, cada piada, cada palavra de preocupação, sua excitação em viver.

Quando chamá-la para um churrasco de domingo na minha casa, o encontro entre Flórida e meu marido será mais tenso do que eu imaginava, mas ela finge bem. Ela vai acabar ficando na sala, longe, vendo minha coleção de DVDs e pôsteres. Quando a encontrar, pedirei desculpas a ela. E não vou saber porque estarei pedindo desculpas. "Nunca tive uma família grande como a sua" ela dirá "acho que não me dou muito bem, não é meu lugar...". Ela baixará a cabeça, os ombros curvados pra baixo, a expressão incerta tão diferente da mulher confidente e divertida que eu conheço. "É seu lugar sim" vou discordar "qualquer lugar que eu estiver será o seu lugar."

Exagero? Fui longe demais? Sei que ela vai olhar para mim, um certo brilho, mas há tristeza lá dentro. Ela vai embora não muito depois e meu marido vai dizer que ela parecia nervosa. Depois... Continuamos. Flórida e eu saímos, não, nós vamos sair, porque Flórida ainda está aqui, absorta nas prateleiras e sem me conhecer.

Iremos para parques, bares, festivais de música e shows de rock. Vou conhecer lugares que nunca fui, vou me encantar com seu tanto em pintar sonhos malucos em muros com grafite, me apaixonar por nossas idas ao parque de diversões e circo, me lembrar de nossas maratonas de Lost que havia estreado ano passado. Tudo estará em meu coração, mas não vou amar mais nada mais do que a presença de Flórida ao meu lado.

Somos amigas, as melhores que poderia a ver, ela é minha, será minha pessoa favorita, será a pessoa que vou pensar por último quando for dormir e a primeira quando acordar.

Quando eu conseguir ganhar dela no fliperama, ela fingir ficar ofendida e vai se abaixar e pegar a minha mão, beijando-a com um sorriso brincalhão porque vitoriosos "mereciam". Nossos olhos vão se encontrar e vou estar completamente perdida, acelerada, Flórida sendo meu único foco, meu estômago cheio de borboletas. Mas ela vai desviar e voltar a atenção para a máquina de jogo, vai se manter afastada, não mais seu braço ao redor dos meus ombros ou segurando meu braço com carinho. Por semanas, ela vai se afastar.

O que fiz de errado? Fiz algo errado? As semanas vão se passar e meu medo aumentar porque ela não me liga mais, não me manda mais mensagens no MSN, não há nada. Vou até ela, na loja de discos e antiguidades que ela trabalha. Flórida me vê e seu olhar é como se visse um tesouro que lhe dá motivo para viver. Vou achar que é impressão minha, porque ela não poderia sentir essa coisa no mesmo nível que eu sinto. Ela me abraça apertado e depois diz que esteve ocupada e que por isso não falou nada. "Acho que..." sua voz vai ficar pequena "estou atrapalhando sua vida."

"Flórida... Você consertou tudo em minha vida".

Eu não vou dizer que estou saindo todos os fins de semana com ela. Não vou saber porque me sinto culpada por estar com Flórida, por adorá-la, por venerá-la, ou porque nunca cito a existência de meu casamento ou por ele ser o elefante na sala.

No réveillon, Flórida vai estar em nosso quintal da frente, sozinha; ela havia saído de nossa festa nos fundos e tomado um ar. Ela está triste. "Não devia ter me chamado, não sou uma boa companhia."

Vou discordar e uma pequena discussão se inicia. "Porque mentiu pro seu marido sobre mim? Ele comentou comigo que faz tempo que não saímos, meses... Mas nós saímos toda semana. Cacete, a gente saiu ontem, quando você devia estar comprando coisas pro Ano Novo com seu marido."

O tom de acusação e mágoa vai me deixar desprevenida. E culpada.

"Você está grávida. Eu ouvi seus parentes dizerem. Você vai formar uma família."

"Eu..." minha voz vai sumir por alguns segundos e terei medo. O castelo de cartas caindo. "Desculpa, devia ter te dito. Eu sinto muito. Mas... Nada precisa mudar. Você também é minha família."

"Não, eu não sou... É melhor não nos vermos mais."

"O quê!?"

"Desculpe..."

"Você é minha melhor amiga."

"Isso não está... Dando certo."

"Você é a pessoa que eu mais amo no mundo."

Os olhos de Flórida se enchem de lágrimas.

"Você não quer dizer isso de verdade."

Eu a abraço e ela hesita antes de me abraçar de volta. E eu a beijo nos lábios, com desespero, surpresa comigo mesma e tenho uma sensação de felicidade máxima, algo que sempre julguei impossível.

Quando meu marido aparece, o sonho se quebra. Vai se quebrar. Meu pânico completo da vida segura que preciso seguir perante todos sendo destruída toma as rédeas.

"Flórida me beijou primeiro!"

Ao meu lado, Flórida vai congelar, o corpo tenso. Em minha mente, não há pensamentos, só o pânico. Vida estável. Vida estável.

Eu sigo meu marido para dentro de casa, não sem antes lançar um olhar de desculpas à Flórida, seu olhar de puro medo e mágoa.

"Ela disse que não vai mais ser a minha amiga. Nós nunca mais vamos vê-la." Vou saber que Flórida está ouvindo, mas me forçar a dizer porque preciso consertar isso.

Flórida acaba de escolher o DVD e vem a minha bancada. A visão continua, uma vida depressiva, desestimulante e vazia depois de tudo. Dez anos depois, quando eu ver Flórida, ela vai ficar chocada e recuar do meu toque e eu vou saber como sua mente, coração e alma foram arruinados por mim.

Eu não vou me lembrar dessas visões. Então tenho pouco tempo para decidir o que fazer com elas. Não sou uma boa pessoa, mas Flórida é.

"Qual seu nome?"

"Flórida."

"Nome completo?"

Ela diz e passa o resto das informações. E é nessa hora que eu decido.

"Você não pode levar o DVD, precisa de um comprovante de residência."

Ela não tem e minha voz áspera não é convidativa a barganhar. Flórida assente. Flórida sai sem levar nada.

Flórida não vai voltar nunca mais à locadora Flag Cat.

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Desfuturo Desfuturo Reviewed by Alana Camp. on agosto 20, 2022 Rating: 5

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