Todo lugar




Eu odeio esta cidade, odeio tanto, mais do que tudo. Odeio porque J. esteve aqui comigo, naquele café pedindo um expresso, enquanto tudo o que eu conseguia fazer era olhá-lo, admirar seu rosto, os braços que eu sabia que eram fortes por debaixo da camisa social e colete estupidamente florido; admirar como uma mecha preta ficava em sua testa, observar seu maxilar forte, sentir seu perfume, achar seu chapéu branco engraçado, tudo enquanto J. não fazia nada além de ler o cardápio.

J. dizia que eu era "tempestuoso". O que caralhos isso significa? Que eu vivia a vida a mil por hora. J. disse, mas isso é bobagem. Você vive a vida verdadeiramente, J. tentou explicar. Mas não fazia sentido, eu não vivia a mil por hora, eu não vivia verdadeiramente, talvez o mais perto que cheguei foi ao conhecê-lo, tocá-lo, abraçá-lo, viver momentos com ele na mera imaginação de que seria para sempre, de que sempre iríamos compartilhar nossos cafés, de que sempre perambularíamos por essas ruas juntos, com o mundo não importando nem um pouco, pois éramos o mundo um do outro. J. ainda é o meu e isso é horrível, tão horrível quanto esta cidade. 

A noite escura e poluída desta cidade não guarda mais segredos, todas as sombras, cantos e becos escuros só escondem a ausência dele, sempre ele. E não há briga de rua ou alarme da polícia que vão tirá-lo da minha cabeça ou me dar o resquício de alguma energia, vontade ou razão de propósito. Eles poderiam me prender de uma vez, me arrastar para o presídio da cidade vizinha. Eu não tenho história nenhuma com J. lá, seria mais fácil. Ele não está impregnado lá, a memória está aqui, nesta cidade maldita. E no casaco dele que ainda está em meu apartamento, guardado cuidadosamente no armário para o cheiro dele durar mais tempo. É isso, preciso me livrar do casaco, não ser preso.

Posso juntar mais dinheiro e me mudar. Assim, se J. voltar algum dia, um dia longínquo, não terei chances de vê-lo. Não vou mais estar aqui. Isso, vou apressar o meu passo e resolver tudo, começando pelo casaco que vou queimar no beco ao lado do prédio, jogando-o numa lata de lixo. Farei isso. Amanhã, depois de dormir abraçado com ele por uma última vez.
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Todo lugar Todo lugar Reviewed by Alana Camp. on agosto 24, 2022 Rating: 5

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